Vitrais 1

O autor da “La Picara Justina”, López de Ubeda, ironizava acerca da arquitetura da Catedral de León, cidade que visitou quando do cortejo de Felipe III, em 1602, pôs, então, na boca de Justina as seguintes palavras: “mesmo que dentro da igreja, certamente pensei que ainda não a havia adentrado, e sim que continuava na praça, isto porque a igreja era tão envidraçada e transparente que faz sentir-se estar-se fora mesmo estando em seu interior…”. A burla refere-se, sem dúvida, ao crescimento na utilização de vitrais nas catedrais góticas do século XIII, ou seja, a substituição de janelas grandes como vãos abertos nas paredes, por paredes translúcidas, criadas pelos vitrais. Contudo, até que a arquitetura alcançasse esse patamar, foram muitas as experiências que se desenrolaram, no que diz respeito aos aspectos técnico, formal e figurativo.

A análise do vitral medieval requer remontar-se à origem desconhecida desta especialidade, pois, apesar de sua existência anterior, de épocas mais remotas, há apenas alguma coisa conservada pertencente ao século XI. A partir de menções literárias, documentais e alguns achados arqueológicos, acredita-se que o emprego desta arte tenha surgido para atender exigências práticas, tal como fechar as grandes janelas de um edifício para impedir a passagem de luz. Esta função prática, a qual se cumpriu por meio da articulação de diversas peças de vidro em um bastidor metálico ou de madeira, formando uma tela translúcida, com o passar do tempo, após a experimentação de certas técnicas, bem como o atendimento a certas exigências arquitetônicas e figurativas, convertendo-se, então, em suporte iconográfico configurador do espaço arquitetônico.

Muito pouco conhecemos sobre os vitrais formados por peças de vidro chumbadas e pintadas em grisalha[1] anteriores aos últimos anos do século XI. Entretanto, aquilo que foi conservado demonstra que já naquela época, a vitralaria já era uma arte integrada na arquitetura, caracterizando-se por seus procedimentos técnicos perfeitamente elaborados. No tratado “Schedula diversarum artium”, com data em torno do ano de 1100, pelo monge alemão Teófilo, versa ser impensável o primor dos conhecimentos técnicos acerca dos vitrais, sem que tenha havido uma tradição anterior que teria se mantido vigente quase sem alterações até os nossos dias.

Desde suas origens, o vitral desempenhou, nas edificações, diversas funções. Elemento de fechamento de um edifício, desde o seu início, apresenta-se como instrumento modulador de luz e fundamental à configuração espacial lumínea do mesmo. Há momentos, nos quais, em determinadas propostas arquitetônicas, como o gótico do século XIII, o vitral atua como uma parte inseparável e componente desta mesma arquitetura. Neste sentido, apresenta-se como um meio para transformar a luz natural, modificando-a cromática e fisicamente daquela vinda do exterior da edificação.

Esta proposta não se produziu sem uma transformação radical do sistema de iluminação dos edifícios. Nas catedrais do gótico clássico, o vitral perde a condição de vão individual e abertura nas faces da parede, condição esta que haveria tido nos prédios românicos. A organização dos sistemas de pressões, transmitidas aos pilares e arcobotantes, eliminou das paredes a função de suporte, permitindo ampliar as dimensões das janelas, a fim de criar-se uma parede translúcida. As catedrais castelhanas de Toledo, Burgos e, especialmente, León são representações deste tipo de estrutura.

O mencionado efeito, conseguido por meio do sistema de iluminação descrito, poderia ter sido igualmente atingido com o fechamento dos vãos por vitrais constituídos por vidros somente coloridos. A transformação cromática, em tese, alcançaria os mesmos valores arquitetônicos, plásticos e simbólicos almejados. Todavia, os vitrais, desde a sua origem, aparecem como suporte de imagens componentes de programas iconográficos em consonância com os formulados por outras artes como a escultura, pintura e miniatura. Some-se, ainda, que este desenvolvimento iconográfico se estabeleceu partindo de projetos formais de acordo com a estética de cada momento. Neste sentido, os vitrais discorrem acerca de problemas plásticos que ocorriam em outras artes, mesmo que, em muitas ocasiões, tenham-se desenvolvido como uma opção artística plenamente inovadora com respeito a outras especialidades. Não é cabível estudar o chamado “Estilo 1200”, ou as artes da cor do século XIII, sem que se analisem os projetos dos vitrais desta mesma época. A complexidade da técnica e dos materiais empregados que, ao tempo que impunha determinadas limitações, proporcionava inesperadas possibilidades práticas. Por fim, há que se observar que a utilização de modelos e repertórios, a organização dos ateliês e do sistema de trabalho dos vitralistas fizeram com que os vitrais, tanto no momento em que se aproximavam da pintura tanto quando se afastavam, seguissem seu próprio caminho de acordo com suas próprias leis.

[1] Os vitrais, de que trata o texto, constituem um tipo específico em suas características e na técnica construtiva empregada. Tratam-se dos vitrais das catedrais góticas do século XIII, cuja técnica não consiste na junção de vidros coloridos. Exige, pois, a junção dos vidros com solda de chumbo, bem como pintura iconográfica, utilizando-se a técnica da grisalha – a técnica de sombreamento é utilizada principalmente para dar volume às figuras em vitrais clássicos e efeitos plásticos diversos. Feita a pintura de contorno, aplica-se a grisalha que é uma composição pastosa da mesma mistura de tinta, trabalhando-se os efeitos desejados após a secagem e, em seguida, levada à queima.